Dificuldades alimentares na infância podem levar a problemas psicológicos
Ser forçado a comer de maneira coerciva pelos pais pode afetar o desenvolvimento psicológico e facilitar casos de depressão e até delinquência
Usar força ou coerção para obrigar a criança a comer pode causar problemas psicológicos no futuro (Thinkstock)
Mais da metade
das mães brasileiras acredita que o filho não come bem. Em um levantamento
feito com 947 mães brasileiras de crianças entre 3 e 10 anos, descobriu-se que
51% delas diziam ter filhos com dificuldades alimentares. Essa dificuldade
da criança para se alimentar pode estar relacionada a alguma condição médica ou
a problemas comportamentais. Em ambos os casos, há riscos de déficit
nutricional que, em casos severos, podem prejudicar o desenvolvimento na
infância. Quando o problema é comportamental, no entanto, os riscos podem ser
ainda mais amplos. Pesquisas internacionais demonstram que crianças que são
forçadas a comer, que são extremamente seletivas ou que desenvolvem um
sentimento de medo em relação à alimentação, têm mais chances de apresentar problemas
psicológicos, como depressão e delinquência, quando chegam à adolescência.
A situação é
agravada por um problema estrutural na medicina: nenhum pediatra sai da
faculdade com o treinamento necessário para reconhecer essas dificuldades,
muito menos para orientar os pais. Das mães ouvidas no levantamento brasileiro,
70% procuraram um pediatra para resolver o problema, mas apenas 11% disseram
ter obtido uma orientação satisfatória. "O pediatra não recebeu, dentro da
faculdade e da residência, um treinamento adequado para diagnosticar e tratar
esse tipo de problema", diz Mauro Fisberg, pediatra da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um dos responsáveis pelo
levantamento. Os números brasileiros não são uma exclusividade. Segundo os
especialistas, os resultados encontrados aqui refletem uma tendência mundial.
Por isso é
importante saber o que fazer com filhos que relutam em comer. As dificuldades
alimentares da infância costumam ter início na fase em que a criança tem
contato com alimentos pastosos — por volta dos seis meses, quando as papinhas
são introduzidas na dieta. Entre dois e três anos, a criança enfrenta também
uma oscilação natural de apetite. A reação dos pais a esse comportamento de
rejeição ao alimento pode ser fundamental na maneira como ela passará a
enxergar o ato de se alimentar. "Não adianta colocar uma pressão enorme
nas costas da mãe dizendo que a criança precisa comer mais. Isso pode ter
resultados piores do que uma deficiência nutricional", diz Benny Kerzner,
gastroenterologista pediátrico do Children’s National Medical Center, em
Washington, nos Estados Unidos. Responsável pela implementação da Divisão de
Gastroenterologia e Nutrição do Centro, Kerzner viaja pelo mundo dando
treinamento em nutrição infantil, e falou ao site de VEJA durante sua passagem pelo Brasil.
De acordo com
Kerzner, nos casos mais conhecidos (e dominados) pela medicina, o problema
alimentar da criança pode ter raízes orgânicas, como a disfagia (problemas de
deglutição) ou mesmo uma deficiência cardíaca. Quando causas fisiológicas são
descartadas, é preciso investigar a sério as questões comportamentais.
"Quando a mãe diz que há um problema, o pediatra tem que encarar que há,
de fato, um problema", diz Kerzner.
Dificuldades
cognitivas — Crianças
com dificuldades alimentares são divididas, normalmente, em quatro grupos:
apetite reduzido, alta seletividade, interferência na alimentação pelo choro e
sensação de medo durante a alimentação. "Em alguns casos, no entanto, a
dificuldade alimentar nada mais é do que uma percepção errônea dos pais",
diz Mauro Fisberg. Como o caso, por exemplo, de crianças
de compleição pequena que comem pouco: com frequência elas comem pouco
justamente por serem pequenas, não o contrário.
Há também o outro lado. Na
classificação desenvolvida por Kerzner, e seguida por muitos pediatras atentos
ao problema, há quatro perfis de pais. O primeiro, chamado responsável, é
aquele que consegue entender corretamente a mensagem da criança e responder de
acordo. Na sequência, vêm o indulgente, o negligente e o coercivo. Cada um
desses três últimos perfis pode levar a diferentes problemas de nutrição.
"Quando se é coercivo, por exemplo, reforça-se o medo, e a criança pode
parar de comer de uma vez", diz. Para o médico, para que os pais consigam
ser bem orientados, é preciso que os pediatras tenham formação adequada para
conseguir identificar as dificuldades da criança, o perfil dos pais
e, assim, decidir a melhor abordagem terapêutica.
As
dificuldades alimentares da criança podem estar associadas a problemas no
desenvolvimento infantil, como alterações no crescimento, dificuldades
cognitivas e alterações imunológicas. Além dos problemas orgânicos, há ainda o
risco de que a criança se torne um adulto com maior propensão a desenvolver
problemas psicológicos, como a depressão. Em um estudo publicado no Pediatrics, periódico da
Academia Americana de Pediatria, a psiquiatra infantil Irene Chatoor descobriu
que crianças com uma condição chamada de anorexia infantil — termo usado para
crianças extremamente elétricas, magras, que "não têm tempo para
comer" — tinham taxas menores de desenvolvimento mental. Os resultados do
estudo demonstraram que crianças do grupo controle, consideradas saudáveis
quanto à alimentação, tinham o maior Índice de Desenvolvimento Mental: 110. Já
aquelas com anorexia infantil tinham índice 99, e as altamente seletivas tinham
96. Em outra pesquisa, as crianças altamente seletivas foram também mais
propensas a desenvolver depressão e até casos de delinquência na juventude —
quando comparadas ao grupo controle. "Esse comportamento não está associado
ao que é ingerido ou não pela criança, mas à maneira como a alimentação foi
feita, se ela foi coerciva ou não", diz Kerzner.
Não se sabe se
crianças que são forçadas a comer podem vir a desenvolver algum tipo de
distúrbio alimentar quando adultas. Segundo os especialistas, a percepção
clínica que se tem é que sim, mas não há ainda pesquisas científicas que
comprovem isso — os dados prolongados sobre o assunto estão apenas começando a
aparecer. "Estamos acompanhando crianças com anorexia infantil e demonstramos
que a maioria evolui bem afinal, mas há um pequeno grupo no qual é muito
difícil reverter o quadro", diz Benny Kerzner. Com base nos dados ainda
preliminares do levantamento, os especialistas acreditam que as crianças que
conseguem ter uma vida alimentar saudável são aquelas cujos pais foram capazes
de mudar a maneira como a alimentação acontece.
De
acordo com o especialista, algumas evidências científicas apontam para
diferenças em respostas neurológicas no comportamento das crianças que são
alimentadas de maneira coerciva. "Elas são intrinsecamente mais alertas, o
organismo delas está muito mais no modo fuga e alerta do que no modo de
relaxamento", diz Kerzner. Uma maneira simples de driblar as dificuldades
alimentares é os pais darem o exemplo. Em outras palavras, o que os pais comem ou deixam de comer, e sua atitude à mesa, acabam tendo
reflexo direto nas escolhas da criança. "Nessa idade, os filhos copiam os
pais", diz Fisberg.
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